Enfim, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”) é uma autarquia. E você pode estar se perguntando: e o que isso muda na prática?
A resposta curta é que, agora, a ANPD ganha independência. A longa é que, com isso, o Brasil passa a estar em um outro patamar em matéria de proteção de dados.
A mudança
Ontem, dia 14 de junho de 2022, foi publicada a Medida Provisória (“MP”) n.º 1.124, alterando a Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) para transformar a ANPD em autarquia. Editada pelo Presidente da República, a Medida já entrou em vigor e produz todos os seus efeitos.
O que significa ser uma autarquia?
Autarquias são pessoas jurídicas de direito público criadas para executar atividades típicas do Estado, com autonomia dentro dos limites de sua atuação. São entidades com personalidade jurídica e orçamento próprios. Além disso, não têm subordinação hierárquica com relação a nenhum órgão do Estado, nem mesmo à Presidência da República, e possuem capacidade de autoadministração.
Todas as agências reguladoras, como a Agência Nacional de Energia Elétrica, Universidades Federais, o Banco Central do Brasil e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são autarquias. E, portanto, todas têm o que faltava à ANPD quando ainda era um órgão integrante da Presidência da República: independência.
E o que vem com a independência?
A ANPD passará a contar com um orçamento próprio, não ficando mais à mercê dos eventuais interesses políticos que poderiam afetar o direcionamento de recursos a ela.
Além disso, por contar com personalidade jurídica própria, ela poderá ser acionada judicialmente de forma direta e, também, acionar por ela mesma. Na prática, as consequências mais relevantes disso são as seguintes:
- a ANPD passa a ter legitimidade para propor ações judiciais na defesa de direitos coletivos em sentido amplo; e
- ela poderá, por exemplo, ajuizar ações para a busca e apreensão de bens, incluindo dispositivos informáticos, além de medidas cautelares para impedir condutas que infrinjam a LGPD.
Antes, para que isso fosse possível, ela precisaria do apoio da Presidência da República para atuar dessa maneira o que, sem dúvidas, era um ponto de preocupação com relação à sua independência. Aumenta, assim, sua capacidade para exercer suas atividades punitivas.
Outros dois desdobramentos extremamente relevantes vêm com a independência. O primeiro deles é que o Brasil passa a ter uma possibilidade maior de ser reconhecido por outros Estados como sendo um país com um nível adequado de proteção dos direitos fundamentais dos titulares de dados. Para citar apenas um exemplo, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (o conhecido GDPR) estabelece que, para que a União Europeia reconheça um Estado como tendo um nível de proteção adequado, dentre outros requisitos, deverá ser verificada a existência e o efetivo funcionamento de uma ou mais autoridades de controle independentes.
Ao ser reconhecido como um país com nível adequado de proteção, transferências de dados entre o Brasil e o(s) país(es) que o reconheceu(eram) como tal não dependerão de nenhum outro tipo de autorização, facilitando a vida das empresas em geral e fomentando (e muito) a economia. Esse benefício é, sem dúvida, o mais relevante.
Por fim, a independência deixa mais próximo do Brasil o tão sonhado ingresso na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento, já que esse, também, era um requisito.
A Medida Provisória é Constitucional?
A transformação da ANPD, de um órgão vinculado à Presidência da República em uma autarquia, por Medida Provisória, gerou uma grande polêmica no meio jurídico.
Segundo a Constituição (art. 37, XIX), somente por lei específica poderá ser criada uma autarquia, o que excluiria a possibilidade de conversão da ANPD por MP. Não concordamos com esse argumento.
Esse tipo de movimento legislativo não é novo. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (“ICMBio”), foi criado por uma MP, ainda em 2007, a qual, posteriormente, foi convertida em Lei [1]. Outro caso emblemático foi a transformação da Autoridade Pública Olímpica – APO, na Autoridade de Governança do Legado Olímpico – AGLO [2]. O Supremo Tribunal Federal (“STF”) parece estar alinhado com este raciocínio. Em julgamento que contestou a criação do ICMBio, o STF [3] não verificou qualquer infração ao artigo 37, XIX da Constituição, uma vez que, passando pelas Comissões Mistas e sendo apreciada pelo Plenário, a MP poderia ser convertida em Lei, satisfazendo os requisitos da Constituição.
Outro receio que circula diz respeito à possibilidade da MP perder seus efeitos, passado o prazo necessário para conversão em Lei.
Segundo o art. 62 §3º da Constituição, as MPs devem ser convertidas em Lei no prazo de 60 dias, prorrogável por igual prazo. Se não houver conversão nesses 120 dias, ou se a MP for rejeitada, a norma perde sua eficácia e, portanto, a ANPD volta a ser um órgão ligado à Presidência da República. A dúvida que paira é: como ficarão os atos praticados pela ANPD nesse meio tempo? Serão invalidados?
Entendemos que os principais atos exercidos pela ANPD como autarquia, como a aplicação de multas, fiscalização etc., já podiam ser exercidos pela Autoridade enquanto órgão integrante da Presidência da República. Por isso, mesmo que a MP perca seus efeitos, na prática, nada muda. Os únicos atos que podem perder a validade são aqueles que somente uma autarquia poderia praticar, como recolhimento de taxas para peticionamento, por exemplo, ou até mesmo constar como pólo ativo ou passivo em ações judiciais. No entanto, não vemos eventual caducidade da MP como um problema relevante para os titulares de dados pessoais e demais atores.
Um último ponto questionado é a existência de urgência e relevância para a edição da MP, condições exigidas pelo art. 62 da Constituição. Para os críticos, o uso indiscriminado desses requisitos poderia levar à banalização do processo legislativo brasileiro. Também não concordamos com essa visão.
A LGPD previu que a ANPD deveria ser convertida em autarquia em até 2 anos contados da entrada em vigor da sua estrutura regimental. Isto ocorreu em 15 de outubro de 2020. Dessa forma, em 15 de outubro de 2022, esse prazo seria atingido, demandando a atuação ostensiva do legislador. A inércia, neste caso, prejudicaria a autonomia administrativa da Autoridade, bem como poderia colocar em xeque a confiabilidade e a capacidade deste órgão em fiscalizar a aplicação da LGPD e aplicar as sanções necessárias. Por isso, concordamos com a Exposição de Motivos da MP [4], e vemos não só urgência como extrema relevância na edição deste ato normativo.
Como a legislação de proteção de dados não depende de Lei Complementar, não haverá, de acordo com a própria MP, aumento de despesa (o que seria vedado), nem tratamento de matérias vedadas pela Constituição, defendemos a constitucionalidade da MP que converteu a ANPD em autarquia. Para nós, isso significa um avanço na legislação brasileira em proteção de dados, ao conceder maior autonomia administrativa e orçamentária à Autoridade, tão necessária para uma atuação eficaz.
[1] MP nº 366/2007, convertida na Lei nº 11.515/2007.
[2] MP nº 771/2017, convertida na Lei nº 13.474/2017.
[3] ADI nº 4.029, rel. Min. Luiz Fux, julgada em 2012.
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Exm/Exm-Mpv-1124-22.pdf. Acesso em 15 de junho de 2022.