Compreendendo a neutralidade de rede
Para compreendermos a neutralidade de rede, é necessário esclarecer algumas definições sobre a própria internet, em especial sobre as suas duas características principais. A internet nada mais é do que uma grande rede descentralizada de troca de informações, cuja troca se dá a partir do envio e recebimento de pacotes de dados.
Pela sua própria estrutura, duas características se sobressaem [1]. A primeira diz respeito à possibilidade de integração de quaisquer redes, abertas ou fechadas. Isso significa que todas as redes podem ser conectadas por meio de um protocolo específico, o protocolo IP (Internet Protocol). A segunda é a possibilidade de conexão aberta a qualquer interessado, ou seja, não é possível discriminar pessoas para limitar o acesso à internet, bastando que haja um dispositivo e uma conexão à internet. Nessa infraestrutura, a transmissão dos pacotes de dados obedece a ordem dada pelo próprio pacote, não sendo admitida, sem uma boa justificativa, a intromissão nos fluxos de dados que ali trafegam.
Para auxiliar na compreensão do conceito, vamos ao exemplo: a Claro, empresa de telecomunicações que oferece serviços de internet, não pode reduzir a velocidade da conexão enquanto o usuário estiver utilizando a Netflix, nem aumentar a velocidade do concorrente, a Disney Plus. Isso seria considerado uma conduta anticoncorrencial, e é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro, da mesma forma que não se permite aos Correios privilegiar correspondências de uma empresa específica.
A essa obrigação de imparcialidade é dada o nome de neutralidade de rede.
Essa regra é absoluta?
Essa característica, contudo, comporta exceções, pois a neutralidade de rede não é absoluta, e alguns casos justificam a sua flexibilização [2]. O Marco Civil da Internet prevê, no artigo 9º, que essa discriminação pode ocorrer em duas hipóteses: (i) quando houver requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e (ii) na priorização de serviços de emergência.
No primeiro caso, um provedor poderá reduzir a velocidade da transmissão de pacotes de um e-mail e privilegiar um vídeo do YouTube, por exemplo, pois um atraso de dois segundos no envio do e-mail não altera substancialmente o serviço, enquanto diversos travamentos de vídeos do YouTube podem comprometer a qualidade da prestação final. No segundo caso, o provedor poderá privilegiar serviços de emergência, como hospitais e postos policiais, aumentando a velocidade de envio de pacotes vindos ou enviados para terminais vinculados a essas localidades.
Portanto, podemos definir que os provedores de conexão possuem deveres com relação à neutralidade de rede. Mas e quando o assunto é a responsabilidade sobre atos ilícitos cometidos mediante o uso da conexão desses provedores? Até onde vai a responsabilidade deles?
Responsabilidade dos provedores de conexão
Em regra, os provedores de conexão não são responsabilizados por atos de terceiros, por dois motivos [3]. O primeiro argumento está na inviabilidade técnica de evitar comportamentos não desejados, pois demandaria um controle em massa das atividades dos usuários, o que poderia significar grande risco à privacidade. O segundo argumento reside no fato de que a conexão à internet não é a causa direta do fato ilegal, mas sim um meio pelo qual se executa tais atos. Por isso, não há correlação entre o ato ilícito e o ato do provedor de conexão, ou, na linguagem jurídica, não há nexo causal. Seria como uma montadora de veículos ser responsabilizada pela utilização de um de seus carros durante um sequestro.
Considerando os argumentos acima enumerados, o art. 18 do Marco Civil da Internet consolidou a interpretação segundo a qual os provedores de conexão não são responsáveis por atos de seus usuários. A ausência de responsabilização dos provedores de conexão pelos atos de terceiros, contudo, não os exime de tomar vários cuidados no desenvolvimento de suas atividades.
Pontos de atenção para provedores de conexão
Em primeiro lugar, é necessário que as normas da Lei de Telecomunicações sejam observadas, bem como as determinações da Agência Nacional das Telecomunicações (ANATEL). Os provedores também devem respeitar o sigilo das comunicações privadas e dos registros, que devem ser armazenados sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, conforme exige o Marco Civil da Internet. O descumprimento dessa obrigação pode ocasionar multas de até 10% do faturamento bruto.
Ainda, é necessário que observem os direitos à privacidade e à proteção dos dados pessoais. Por isso, para além de normas específicas, é essencial que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) seja obedecida em sua integralidade. Nos casos de descumprimento dessas obrigações, ao provedor de conexão podem ser atribuídas diversas sanções, dentre as quais uma multa de 2% do faturamento líquido do último ano.
Outras obrigações gerais estão ligadas à disponibilização dos serviços nas condições contratadas. Nesse caso, para além das normas contidas no Marco Civil da Internet e na LGPD, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) também se aplica aos provedores de conexão.
Essas obrigações existem mesmo que o provedor de conexão seja local, sem grande relevância nacional. Afinal, a legislação não fez diferenciação entre os tipos de provedores, definindo um conjunto único de normas a serem observadas. Pequenos provedores de conexão desempenham um papel fundamental na democratização do acesso à internet, oferecendo serviços personalizados e competitivos. Com dedicação, inovação e um compromisso com a qualidade, esses provedores impulsionam o desenvolvimento local, transformando comunidades e impulsionando o crescimento dos negócios.
Referências
[1] SOUZA, Carlos Affonso Pereira de; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 112.
[2] PARENTONI, Leonardo. Neutralidade de rede: mudanças na infraestrutura da internet e como isso influencia na sua vida. , , Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 19, n. 119, p. 560-597, out. 2017/jan. 2018. Disponível em: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/1365/1225. Acesso em: 4 jul. 2023. p. 588.
[3] SOUZA, Carlos Affonso Pereira de; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 98.